Rainha do Baile

        O espaço estava impecável. Cada mesa fora decorada com uma toalha de linho creme e uma decoração floral ao centro, três vasos cilíndricos de diferentes tamanhos com orquídeas submersas e velas flutuantes ao topo. Havia uma iluminação especial para a pista de dança que tomava dois quartos do espaço, ao fundo do pequeno palco havia uma cortina de fairy light, microlâmpadas de LED delicadas, que davam um certo refinamento e destaque que o palco precisava.

        O evento já havia começado há pelo menos uma hora e todos estavam na pista de dança, mas, naquele momento, a música havia sido suspensa. O mestre de cerimônias estava no palco e todas as atenções estavam voltadas ao mesmo.

        “É uma honra estar aqui diante de vocês nessa noite tão especial, bem-vindos formandos de 2014.” – o anfitrião aguardou que os aplausos cessassem e continuou – “Formatura representa encerramento, representa também conquista e a oportunidade de encontrar novos desafios. Porém, hoje, é um dia de celebração, e para iniciar essa noite com o pé direito, nós não vamos esperar nem mais um minuto e anunciaremos o rei e a rainha do baile dessa noite tão especial.” – o anfitrião fez mais um breve pausa, duas pessoas subiram ao palco, cada uma carregava uma espécie de almofada com uma faixa e uma coroa, elas se posicionaram ao lado do mestre de cerimônias. “Recebam com uma salva de palmas Alberto Andrade e Ana Rodrigues, rei e rainha do baile de 2014”.

        Dois corredores se formaram e se encontraram ainda antes de chegar à entrada lateral do palco. O rei e a rainha caminhavam a passos firmes e pelos aplausos e sorrisos que se seguiram após o anúncio estava claro que a decisão foi unânime. Alberto não pareceu surpreso com a nomeação e foi o primeiro a chegar à lateral do palco, mas preferiu esperar por Ana para subirem juntos.

Ana levou alguns segundos para entender o que acabara de acontecer. Aqueles que estavam ao seu lado a felicitaram e logo que o corredor se formou ela começou a percorrê-lo. Ela tentava manter seu foco nos poucos metros que tinha a sua frente, mas estava tendo dificuldades, sua mente insistia em levá-la a diferentes momentos da sua infância, e a cada passo o passado se tornava mais presente.

        Fechou os olhos lentamente e ao abri-los encontrou-se na sala de estar da casa em que vivera toda a sua infância. Podia ouvir o cachorro latindo no quintal e a mãe chamando a família para jantar na cozinha. Aquele era um dos momentos favoritos do seu dia, era sempre a primeira a sentar-se e adorava observar a mãe sorrindo e cantarolando enquanto colocava a mesa. Não demorava para que o jantar fosse servido, como dizia o pai “o cheiro da comida era convidativo demais para esperar”.

        A pequena de olhos verdes ainda estava terminando o seu prato e a mãe começava a lavar a louça, o pai compartilhava com eles sua rotina do escritório, fazia questão que cada um dos quatro filhos contasse algo sobre o dia deles e reservava alguns minutos para apreciar a esposa, que ainda estava na pia a espera dos pratos das crianças, ele não dizia nada, apenas olhava. Ana, às vezes, gostava de tentar adivinhar o que o pai estava pensando, acabava sempre chegando a conclusão que ele agradecia por ter alguém que cozinhasse e dançasse tão bem ao seu lado.

        Todos os dias a rotina era a mesma, o pai se levantava, recolhia os pratos que ainda estavam na mesa, levava à pia, beijava o rosto da esposa, agradecia pela refeição e se no rádio estivesse tocando uma música do seu agrado eles começavam a dançar. Não demorava para as crianças imitarem os pais, a cozinha se transformava em pista de dança e os pais se revezavam dançando com os filhos.

        Ana abrira os olhos novamente e estava a poucos passos de Alberto. Ela chegara a lateral do palco, mas não sabia como. Havia uma mistura de sensações tomando conta de todo o seu corpo, sentia-se nostálgica e saudosa pelos tempos na casa da rua sem saída e dos jantares em família, e, ao mesmo tempo, apreensiva pelas memórias tomarem lugar do presente de maneira tão vívida.

        A festa era traje a rigor e Alberto estava impressionantemente elegante. Terno e gravata azul-marinho, o paletó estava desabotoado, o que deixava a mostra o colete da mesma cor e a camisa branca. Vestia sapato marrom, o que Ana considerava uma escolha ousada, mas que combinava completamente com sua personalidade. Alberto tinha olhos castanhos e sobrancelhas grossas que deixavam seu olhar ainda mais intenso e ele sabia disso.

        Alberto assistia Ana andando pelo corredor como quem via uma estrela de cinema no tapete vermelho, ela estava encantadora, seu vestido verde longo de manga comprida e gola O-neck em jersey, sem muitos detalhes exceto na altura do estômago onde o vestido tinha um drapeado a esquerda, a bolsa de mão era dourada, brincos de lágrima em ouro e diamante que combinavam com o bracelete de ouro em seu pulso esquerdo. O cabelo curto na altura das orelhas e a franja completavam o look de dar inveja a qualquer atriz de Hollywood.

        O rei e a rainha pela primeira vez naquela noite estavam reunidos e juntos eles eram estonteantes, não havia como questionar o título que eles estavam prestes a receber. Alberto estendeu a mão ao ver Ana se aproximar, entretanto, ela vira a mão de seu pai, lembrou-se do esforço que fazia para não perder o equilíbrio, enquanto se apoiava nos pés paternos e tentava acompanhar os movimentos do pai, que, agora, segurava ambas as mãos da filha com firmeza para eles poderem dançar.

        Sentiu o toque de Alberto e voltou para o presente, sua respiração ficara um pouco apressada e antes do primeiro degrau, ele sussurrou próximo a seu ouvido: “Calma, está tudo bem. Eu estou aqui se você precisar”. Ela acenou com a cabeça, respirou fundo e começou a subir os degraus à sua frente.

        A coroação foi simples e rápida. A professora Roberta juntou-se a eles no palco, colocou a faixa e a coroa em Alberto. Estava pronta para coroar Ana quando foi interrompida pelo, agora, rei que pediu para fazê-lo. O público foi à loucura, ouvira-se um misto de risos, aplausos e gritos. Ana sentiu todos os músculos do seu corpo se tensionarem, havia se passado muito tempo desde a última vez que se sentira tão especial e queria ter certeza de que não esqueceria daquele momento.

        Alberto aproximou-se, condecorou-a com a faixa e depois a coroa, todos seus movimentos eram cautelosos e precisos, como quem fosse acostumado a esse tipo de cerimônia. Segurou a mão de Ana mais uma vez, guiou-a até a altura dos ombros, inclinou-se levemente e beijou delicadamente seus dedos.

        Nem mesmo o mestre de cerimônia foi capaz de conter-se diante de tal cena e proclamou: “Eu lhes apresento o rei e a rainha do baile, por favor, preparem-se para a primeira dança dos nossos monarcas” – na pista de dança surgiu uma grande área vazia para que Alberto e Ana pudessem se apresentar. Todos pareciam ansiosos para contemplá-los em sua primeira dança juntos naquela noite.

        Alberto conduziu Ana ao centro da pista de dança, colocou sua mão direita nas costas dela. Ela podia sentir seus dedos fechados tocando sua omoplata. Ela, por sua vez, colocou sua mão e braço esquerdo na parte superior do braço direito dele. Seus corpos estavam em contato da coxa direita até ao meio do tronco. Alberto estava com sua mão esquerda erguida próxima ao ombro, esperando pela mão direita de Ana, ela rapidamente posicionou a palma da sua mão contra a dele e pôde sentir os dedos se fechando ao redor de sua.

        Seus olhares se encontraram. O rei sorriu mais uma vez para sua rainha e seus olhos castanhos e intensos deixaram Ana envergonhada. Ela desviou seu olhar por alguns segundos e quando tentou voltar sua atenção ao seu parceiro de dança, viu-se diante de outro homem.

        Ao som de uma valsa tradicional o casal se movimentava vagarosamente. Parecia que alguém empurrava um eletrodoméstico pesado ao redor do salão. Os movimentos eram coreografados, no entanto, rígidos, a expressão facial dos dois era de desconforto e ninguém parecia estar se divertindo naquele momento, nem mesmo os convidados que apenas assistiam. O pai de Ana interrompeu o casal, pediu a Antônio para ter uma última dança com a filha, e tomou-a dos braços do genro.

        Ele viu os olhos da caçula se iluminarem, ela havia recém-completado 22 anos e depois de um ano de namoro estava se casando. Era a última a sair de casa e aqueles olhos verdes que eram sempre tão curiosos durante o jantar, não estariam mais lá com a mesma frequência que ele gostaria. Ele não estava pronto para sua partida, seus instintos paternos o atormentavam, mesmo no dia do casamento da filha, algo lhe dizia que aquela não era a pessoa certa para sua Ana.

        Dançaram, mesmo não tendo ensaiado, eles sabiam exatamente o que fazer, a naturalidade com que Ana era conduzida pelo pai deixou todos, no salão, boquiabertos, e quando a música terminou o pai olhou ternamente para a filha, beijou sua testa como de costume e viu o noivo aproximar-se.

        Antonio Junior, Isadora e Pedro foram os únicos parceiros de dança que Ana teve nos 40 anos que se seguiram depois da noite do seu casamento. Antônio revelou-se extremamente possessivo e não aceitava a ideia de que Ana dançasse com ninguém. Ele tinha dois pés esquerdos, a esposa tentou ensiná-lo logo nos primeiros meses de casados, mas ele não tinha interesse e depois de algum tempo toda vez que ela insinuava o desejo de dançar era o motivo para o começo de mais uma discussão.

        Argumentos era o que não faltava no apartamento 204. As roupas eram muito justas; a maquiagem; a risada era alta demais; ela visitava demais a família; as crianças eram desobedientes; as notas baixas do Pedrinho; investir dinheiro nos estudos da Isadora era desperdício; tudo era culpa ou responsabilidade dela.

        No início Ana ainda tentou convencer o cônjuge de que os tempos eram outros e convencer-se de que ele podia mudar, mas perdeu a esperança no dia em que seu pai disse que não iria interferir, que agora ela pertencia ao marido. Ela nunca quis ser objeto de posse, no entanto, ninguém parecia se importar com a sua opinião. Desistiu. Trocou seus sonhos pelos dos filhos.

        Jamais se arrependera de sua decisão, e mesmo tendo um casamento complicado teve momentos felizes. Ele demonstrou-se capaz de amar algumas vezes e acreditava que os filhos precisavam crescer na convivência de ambos os pais.

        “Ana”… “Ana” – escutou alguém chamar seu nome, mas não tinha certeza de onde vinha a voz – Antônio Rodrigues foi diagnosticado com câncer no fígado em estágio avançado seis meses antes de morrer. Pedro, o caçula, havia acabado de se formar em direito. Isadora estava fazendo intercâmbio no exterior e Antônio Junior esperava o primeiro filho. A notícia surpreendeu a todos, mas Antônio Neto substituiu as lágrimas de tristeza logo que chegou ao mundo.

        “Ana”… “Ana” – ouviu mais uma vez a voz e sentiu uma leve pressão em sua mão direita. “Ana, tudo bem?” – acenou positivamente com a cabeça. Encarou seu parceiro de dança mais uma vez, ele tinha um semblante preocupado, as marcas da idade não podiam disfarçar sua expressão aflita.

        A música começou e ele a conduzia impecavelmente, Ana ainda estava um pouco apreensiva inicialmente, os passos eram precisos, mas não tão confiantes quanto os de Alberto. Ela olhou à sua direita e viu os olhos verdes e curiosos de Antônio, o neto acabara de completar 7 anos, e era o maior entusiasta da avó.

        Quando o filho foi visitá-la, como fazia todos os domingos, com o flyer das aulas de dança para a terceira idade, Ana começou a rir imediatamente. Ela havia dito ao neto o quanto gostava de dançar, mas jamais imaginou que Antônio iria levar tão a sério. Junior disse que o filho insistira para que o pai o ajudasse na missão, e não havia nada que fizesse ele mudar de ideia, a avó tinha que voltar a dançar “é a nossa forma de agradecer pela comida gostosa de domingo”.

        Piscou para o neto como sempre fazia, ele, por sua vez, tinha os dois polegares erguidos em sinal positivo. Por causa dele ela voltara a ter seus próprios sonhos. Alberto notara a comunicação entre avó e neto e disse “ele tem os mesmos olhos curiosos e verdes”.

        Ana sorriu, olhou ao redor e se esforçou para registrar cada instante daquela noite. O passado não voltaria a importuná-la durante o baile. Acompanhada dos amigos conquistados ao longo de um ano de aulas, ela iria rir, divertir-se e celebrar a vida e no dia seguinte ela estaria pronta para o próximo desafio.

Published by Tassia Kespers

Escritora, professora, tradutora, revisora, mãe e exploradora nas horas vagas.

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