O despertador tocara pela sétima e última vez, não havia mais jeito, era preciso levantar agora ou Joana estaria atrasada. Não que isso ocorresse com frequência, pelo contrário, em 5 anos de firma ela sabia exatamente todos os dias em que se atrasara ou tivera que faltar, e todos tinham uma justificativa plausível. Joana fechou os olhos, mentalizou que após alguns minutos toda a vontade que ela sentia de ficar na cama já teria passado e encontrou forças para se levantar. Eram 7:35 da manhã, Joana tinha 15 minutos para se arrumar, escovar os dentes, colocar um sachê de café solúvel e um pacote de bolacha de água e sal na bolsa, alimentar o gato e deixar o apartamento em que morava.
Todos os dias suas manhãs eram iguais. Joana nunca gostara muito das manhãs, nunca se incomodara com as longas horas noturnas trabalhando para cumprir prazos, mas acordar com o nascer do sol de segunda à sexta era penoso. Tinha o hábito de tomar banho antes de dormir e contentava se com pouco no café da manhã, em troca de alguns minutos a mais na cama.
Deixara o prédio onde morava e dirigiu-se ao trabalho. O dia começara bem, o tanque de combustível estava pela metade e não teria que parar para reabastecer. Apesar do trânsito, o tráfego fluía. Em dias como esse, Joana fazia o possível para não sorrir ou esboçar qualquer sinal de satisfação, ela acreditava que se comemorasse por ter um bom dia antes da hora surpresas indesejadas apareceriam em seu caminho.
Chegando ao trabalho tudo parecia normal, alguns colegas que já estavam lá, ainda havia 10 minutos antes do horário inicial para bater o ponto, e outros, os mesmos de sempre, ainda estavam a caminho. Joana normalmente usava aquele tempo para preparar seu café e comer suas bolachas. Era segunda-feira, e todas as segundas a primeira atividade em pauta na empresa era reunião geral, cada segunda era uma surpresa, dependia muito de como fora o final de semana do chefe. Ela normalmente aguardava um dos seus colegas que o seguia nas redes sociais para saber se devia se preparar para o pior.
Joana estava evitando usar seu celular o máximo possível, ela havia terminado um relacionamento de três anos e as redes sociais ou a falta de novas mensagens faziam lembrar dele. Os seis meses que se seguiram após o término foram preenchidos por horas em redes sociais, stalkeando cada passo do ex e vigiando cada atualização no messenger. Não, eles não se deletaram de nenhuma rede social, e o que no começo era motivo de esperança tornou-se tortura para Joana. Foram muitas noites em claro até que sua melhor amiga num momento de descuido pegou seu celular e desvinculou a amizade virtual entre os dois em todas as plataformas possíveis. As duas ainda não haviam voltado a se falar desde aquele dia, mas o vínculo com o ex fora quebrado.
A reunião estava prestes a começar, Joana não teria tempo de descobrir que tipo de reunião lhe esperava, mas ao se encaminhar para aquele fatídico evento ela sentiu algo diferente. Seus colegas não pareciam angustiados ou ansiosos como todas as segundas, havia sorrisos, passos confiantes e um certo clima de descontração que não era nada comum por ali. Quando o chefe finalmente adentrou seu campo de visão, ela tinha certeza de que algo estava errado. Rodrigo, seu chefe, caminhava entre seus funcionários como se fosse o chefe mais amado e respeitado em todo o universo. Joana balançara a cabeça, ela devia estar imaginando coisas, talvez ela precisasse de mais café para acordar. Era isso, ela ainda estava sonolenta.
A sala de reuniões era pequena, mas confortável, todos que precisavam estar ali já haviam chegado e estavam sentados com suas agendas ou blocos de anotações, preparados para dar início a mais uma semana. Não era permitido o uso de eletrônicos durante a reunião, nem mesmo para anotações, a princípio a regra parecia bastante arbitrária para qualquer companhia que buscasse ser moderna e inovadora, mas quem estava na empresa desde o início, como Joana, sabia que a regra existia porque as pessoas acabavam usando os eletrônicos para fins pessoais e a reunião tomava mais tempo do que o necessário. Os únicos eletrônicos na sala eram uma TV smartboard, que raramente era ligada, e o computador portátil do Rodrigo, caso fosse necessário alguma pesquisa rápida ou acesso a qualquer informação da empresa.
Rodrigo não demorou para começar a reunião, ele ligou a TV, colocou na função de quadro negro, sorriu, e pediu para que seus funcionários lhe ajudassem a fazer a pauta. Era a primeira vez que Joana vira o chefe iniciar a reunião daquela maneira, ela olhou para sua xícara de café que agora estava na metade e começou a acreditar que aquela seria uma reunião produtiva, como as que ocorriam quando Rodrigo estava de bom humor.
Conforme a reunião prosseguia Joana estava certa de que aquele deveria ter sido um dos melhores finais de semana na vida do chefe e, talvez, na de alguns de seus colegas também. Muitas decisões estavam sendo tomadas e em conjunto, pendências que sempre ficavam para a próxima reunião foram decididas em poucos minutos, algo difícil de acontecer naquela empresa, primeiro por conta do narcisismo do chefe, que precisava ter a última palavra em tudo, e depois por conta de um grupo de funcionários que insistia em ser do contra. Mas naquela atípica segunda-feira, todos pareciam dispostos a colaborar.
Joana estava se sentindo deslocada, afinal era a primeira vez em que participava de uma reunião como aquela e foi exatamente no momento em que ela percebera que estava aquém dos demais que ela ouvira seu nome. Um misto de desespero e terror invadiu Joana, todos a olhavam atentamente, aguardando sua resposta, ela não a tinha, e a única coisa que ela pôde fazer foi torcer para que nada pudesse acabar com o bom humor do chefe e decidira ser honesta:
– Eu sinto muito Rodrigo, eu ainda não terminei o relatório que você me pediu, eu pretendia terminá-lo ainda esta manhã. – Se Joana ainda acreditasse em Deus, esse seria um dos momentos em que ela faria uma pequena oração enquanto aguardava a resposta, ou descontrole, do chefe. Ela tinha certeza de que a equipe toda ia responsabilizá-la pelo fiasco ocorrido ao fim da reunião e o mau humor do chefe que iria durar a semana inteira.
– Sem problemas. Por favor, assim que possível, encaminhe o relatório ao meu email e se eu ainda estiver no escritório, passe na minha sala para revermos os dados juntos antes de encaminhá-lo aos demais. – Rodrigo respondeu e iniciou o próximo assunto da pauta.
Joana ainda estava céptica com aquela resposta, olhou ao redor e aguardou pelos olhares de reprovação, mas os poucos olhares que ainda a seguiam não a julgavam. Joana refletira se depois daquele ocorrido ela poderia sorrir e agradecer pela boa sorte do dia, mas ainda haviam três horas para o horário de almoço e ela não queria acabar com a sua onda de sorte tão cedo e conteve-se o máximo possível.
O reunião terminara com Rodrigo, ainda sorridente, agradecendo à participação de todos. Joana, levantou os olhos, receosa, ela temia os olhares críticos por ela não ter terminado o relatório, mas eles não vieram. Ela ainda esperou alguns instantes antes de se levantar para ver quais de seus colegas estava a espera da saída do chefe para criticar tudo o que ocorrera na reunião, mas todos se dirigiam às suas respectivas áreas de trabalho e o único borbulho que se ouvia eram vozes otimistas pela semana que teriam pela frente.
Joana estava começando a desconfiar de que algo estava muito errado. Foi quando ela olhou para o relógio digital que ficava na sala de reuniões
05 de Setembro – 10:23.
Era isso, dia de pagamento, feriado em plena quarta-feira e final de trimestre, o que significava bônus por desempenho. Não havia motivos para reclamar daquele dia. Joana relaxou por alguns segundos, mas lembrou-se de que precisava terminar seu relatório, não havia tempo a perder.
Era quase hora do almoço quando Joana terminou sua planilha. Dirigiu-se à sala de Rodrigo, mas ela estava vazia, provavelmente ele tinha ido almoçar, colocou as folhas impressas em cima da mesa, bateu o ponto e deu início ao seu intervalo.
Joana era uma pessoa que adorava rotina, acordava normalmente no mesmo horário; as refeições eram as mesmas; frequentava os mesmos lugares; tinha os mesmos amigos há mais de 10 anos; realizava as mesmas atividades diárias, semanais e mensais na mesma hora, com as mesmas pessoas, tudo sempre do mesmo jeito.
O restaurante era o mesmo de todas às segundas, self-service com ampla variedade de salada, era preciso compensar o domingo em que permitia-se exagerar um pouco, ele ficava a 10 minutos da empresa. O restaurante não costumava ficar muito cheio, mas era possível notar que o local tinha uma clientela fiel durante a semana.
Joana chegara ao restaurante e tudo parecia estar a seu favor, a mesa em que ela costumava se sentar estava desocupada, as opções do dia estavam entre as suas favoritas e o garçom que ela considerava ter o melhor atendimento estava no salão. Joana servira-se, dirigira-se à sua mesa habitual e pediu uma água tônica. Ela gostava de almoçar sozinha, sem ter com quem conversar podia usar o tempo para assistir um episódio de alguma das suas séries favoritas. Ela também adorava comer sem ser incomodada e os funcionários dali já sabiam de sua preferência. Assim que sua água tônica chegou, Joana colocou seus fones de ouvido e esqueceu o mundo ao seu redor.
Almoçou. Estava pronta para levantar-se e dirigir-se ao caixa quando percebeu que sua bolsa não estava na cadeira ao lado, onde costumava deixar. Refizera mentalmente seus passos e lembrou-se que deixara a empresa logo após sair da sala de Rodrigo e que havia esquecido completamente de que precisaria da sua bolsa.
Um frio subiu a sua espinha por não saber como iria pagar pela refeição. Uma coisa era ser conhecida pelos funcionários, outra era pedir para pagar fiado pelo almoço. Sua mãe jamais a perdoaria por esse deslize, não havia nada pior do que dever para os outros na opinião da mãe. Joana olhou ao redor e viu celulares em todas as mesas e o próprio à sua frente e lembrou-se de que a tecnologia já havia avançado ao ponto de que ela poderia pagar com o celular. Dessa vez Joana não pode conter o sorriso e pela primeira vez naquele dia permitiu-se sorrir sem medo.
Não demorou muito para Joana dirigir-se ao caixa. Havia uma pequena fila à sua frente, o que era um pouco incomum para aquele lugar. Foi quando começou a prestar atenção no que estava acontecendo. Atrás do balcão, a dona do estabelecimento explicava para a cliente que o sistema estava fora do ar e nenhum pagamento via cartão ou celular poderia ser efetuado.
Joana sentiu-se culpada por ter sorrido alguns minutos atrás. Era como se uma força misteriosa estivesse assistindo atentamente a cada movimento, esperando pelo momento em que ela se deixaria levar pelos acontecimentos do dia e se sentiria segura para acreditar que teria um bom dia e pronto tudo começaria a desabar como em um castelo de cartas.
A proprietária do restaurante, ao contrário do esperado, não parecia preocupada com o fato dos clientes não poderem pagar. A solução encontrada por ela fora entregar um cartão do restaurante a cada pessoa que não tinha outra forma de pagamento disponível no momento e escrever atrás o valor que cada cliente deveria pagar. Ela ainda pedia que eles retornassem no prazo de sete dias para efetuarem o pagamento, anotava em um caderno o nome da pessoa e o valor, para o caso de alguém esquecer o cartão.
Joana não podia acreditar no que ela estava ouvindo e a calma que as pessoas estavam vivenciando tudo aquilo. Ela começou a desconfiar de que a pessoa a sua frente era alguém conhecido da dona e por isso o tratamento estava sendo diferenciado. Era hora de descobrir.
– Boa tarde, qual é a forma de pagamento?
– QR code pelo celular.
– Infelizmente o nosso sistema está fora do ar, mas se não for muito incomodo eu gostaria de lhe dar o nosso cartão de visitas com o valor da conta de hoje no verso e anotar no meu caderno caso você perca ou esqueça o cartão no dia em que voltar. Você pode passar no restaurante qualquer dia durante a semana para efetuar o pagamento. Tudo bem para você se fizermos dessa forma?
Joana ainda estava tendo dificuldades de acreditar no que estava acontecendo.
– Você quer me dar um cartão com o valor que eu tenho que pagar e eu tenho uma semana para voltar? Como você vai ter certeza que eu vou voltar para pagar?
– E por que não voltaria? – a dona respondeu prontamente, como se não tivesse entendido bem a questão.
Joana perdera as palavras, ela simplesmente balançou a cabeça em sinal afirmativo. A proprietária do restaurante lhe deu o cartão com o valor no verso, anotou em seu caderno, sorriu e agradeceu pela compreensão. De repente, tudo parecia fora de eixo. Ela saiu do restaurante atônita, a passos lentos e tentando processar o que acabara de lhe acontecer. Ela saíra de um restaurante sem pagar, mas a razão de seu desconforto não era o fato de não pagar, ou da solução encontrada, mas as palavras da dona que ainda ecoavam em sua mente – “E por que não voltaria?”.
O caminho de volta para o trabalho foi lento, Joana não se perdeu pois já havia feito o mesmo trajeto tantas vezes que o fez inconscientemente. Um turbilhão de pensamentos inundava sua mente, era difícil concentrar-se para entender tudo o que havia acontecido naquela manhã, mas de uma coisa ela tinha certeza, não havia dia melhor para ligar para sua melhor amiga e, depois de tantos meses, finalmente deixar para trás o passado.
Percebeu que estava há poucos metros do edifício em que trabalhava, avistou a pequena praça que tantas vezes passou seu horário de almoço para evitar conversas desnecessárias com seus colegas de trabalho. Caminhou vagarosamente até lá e sentou-se em um dos bancos que havia ali. Precisava organizar melhor suas ideias. Era preciso ser honesta consigo mesmo antes de ser honesta com sua amiga.
Não conseguia entender como até aquele momento não havia notado quantas vezes havia mentido para si mesma e acabara fazendo o mesmo com os outros. A verdadeira razão de ter ficado tão irritada com sua amiga fora o fato de não querer admitir de que estava errada, ela sabia que devia se distanciar do ex, sabia que estava sofrendo ao acompanhá-lo nas redes sociais, mas às vezes é muito mais fácil queixar-se do problema do que encontrar soluções e seguir em frente. Naquela segunda feira atípica, em uma reunião onde egos foram deixados de lado para que problemas fossem resolvidos; a confiança de que o outro não tinha motivos para não fazer o que fora combinado, Joana percebeu que estava na hora de encontrar soluções, chegou o momento de deixar os problemas que não lhe permitiam seguir, ser honesta consigo mesma.
Fechou os olhos, cobriu o rosto com suas mãos, sentiu uma paz que não lembrava ter experimentado antes. Estava pronta para iniciar um novo momento da sua vida. Começando por aquela ligação. Abriu os olhos, afastou as mãos lentamente do rosto e acompanhou cada movimento das mesmas. Tentou olhar atentamente para cada detalhe em suas mãos e notou que estava tendo dificuldades para fazê-lo. Tentou fixar seu olhar nos dedos, mas era em vão. Respirou fundo, voltou-se aos dedos e tentou contá-los, fracassou mais uma vez. Foi então que teve um estalo.
Era um sonho. Sabia que estava prestes a acordar, quando fracassou ao contar os dedos, começou a retomar consciência lentamente e sabia que despertaria em breve e havia poucos segundos antes que acordasse, não lhe restava muito a não ser torcer para lembrar-se de tudo. Sim, estava em um sonho, mas queria que aquele fosse o despertar de uma nova etapa, era preciso lembrar-se dele, era preciso reconhecer que aquela manhã atípica não era impossível, era preciso permitir-se sorrir no decorrer do seu dia, era preciso lembrar-se de ser honesta consigo mesmo, sem ter que se questionar por que o faria. Era preciso acordar e agir. Era preciso ligar para sua melhor amiga e pedir desculpa.
Joana despertou, e tudo o que sentiu foi o vento contra o seu corpo, não conseguiu abrir os olhos, mas sabia que estava em queda livre. Era tarde demais, ela tinha todas as respostas para seus problemas, mas lhe faltava tempo. Dizem que antes de morrer vemos o filme de nossas vidas, Joana viu seu futuro e teve apenas tempo de sorrir uma última vez.