Eu nunca fui de cozinhar. Não que a cozinha fosse um ambiente inóspito e misterioso, mas por ser a caçula da família, eu era responsável por secar e guardar a louça, mais tarde fui promovida a função de lavar também. O fogão estava sempre distante (dependendo do tamanho da cozinha), eu, normalmente, só assistia minha mãe cozinhando e tentava entender como ela fazia bolos e tortas e adicionava as medidas “a olho”. Ela dizia que com o tempo eu iria entender e fazer o mesmo, mas o tempo passou e eu pouco me aventurei.
Na faculdade, eu morei com três outras meninas, todas mais velhas e todas tinham mais experiência na cozinha do que eu. Como já disse em outro texto, alguns dias da semana eu tinha aula a noite e elas não. Portanto, elas cozinhavam e eu ficava com a louça. Não que eu achasse ruim chegar em casa e a comida estar pronta, ou que reclamasse de ter uma pilha de louça para lavar. Para quem já morou em república sabe que nem sempre é fácil alinhar diferentes personalidades e hábitos em uma casa, e parecia que na cozinha nós tínhamos encontrado um sistema que funcionava para todo mundo a maior parte do tempo.
Ao mudar para a China, eu estava sozinha pela primeira vez e agora, não tinha mais desculpa, era a minha chance de assumir o fogão. Eu não vou negar que no começo eu cozinhei quase todos os dias, mas ao descobrir o quão barato era comer em restaurantes menores, e por Tianjin ser uma cidade onde a comida não é apimentada, eu logo desisti da idea. Quando eu, finalmente, cozinhei novamente para alguns amigos, eles estavam tão surpresos quanto eu da minha capacidade culinária.
Em Guiyang, no começo eu sofri um pouco com a pimenta, mas meu maior problema foi que ao cozinhar eu errava na quantidade, acabava cozinhando demais e comendo exacerbadamente. Não demorou muito para eu encontrar os restaurante no caminho para a faculdade (sim, eu estudei chinês por seis meses na universidade) e o trabalho que eu poderia confiar. Conclusão, no primeiro ano eu pouco cozinhei.

Em 2017, eu não estava mais sozinha, André teve muito mais dificuldades de se adaptar a comida daqui e eu fui para cozinha. Ele e os americanos que tínhamos amizade aqui adoravam a comida do dia – a – dia do Brasil. Arroz, panqueca, frango, purê de batata, torta salgada, tudo eles comiam e iam contar para mãe de como eles tinham jantado algo sensacional no dia anterior. Um ano depois meu irmão e meu cunhado vieram morar conosco e ficou muito mais fácil e natural fazer as refeições em casa, afinal agora nós éramos quatro.
Meu irmão assumiu mais uma vez a cozinha e a enfadonha missão do supermercado. Por conta da minha rotina no trabalho, à princípio, fez sentido que ele cuidasse da gente com suas receitas. Um fato curioso que muita gente não deve saber é que nos últimos 17 anos eu pouco convivi com o Thalles. Depois que ele foi para a faculdade, ele foi mais corajoso que eu e não voltou para casa, até que surgiu uma oportunidade de trabalho onde meus pais estavam morando, eu estava no meu primeiro ano na China, quando eu voltei os nossos horários de trabalho não coincidiam, depois ele mudou de novo, e, finalmente, eu voltei para a China. Portanto, quando eu digo suas receitas é porque ele seguia a base do que nós aprendemos em casa, mas ele havia incorporado seu tempero pessoal no preparo das refeições.




Mais tarde nem fazia tanto sentido que ele continuasse na cozinha, alguns dias eu tinha mais tempo do que ele, mas o hábito me impediu de me arriscar. Além do mais, não é todo dia que você expressa seus desejos e eles são atendidos. Se alguém em casa dizia que estava com vontade de ter doce, lá ia ele para cozinha, alguém queria seguir uma dieta mais saudável, lá ia o Thalles preparar macarrão de cenoura e abobrinha. Aniversário era proibido considerar a possibilidade de comprar um bolo e em cada um o bolo era diferente.

Um dia veio a confissão “a cozinha é minha terapia”. Eu com minha inexperiência em cozinha e terapia pouco entendi o que significava na época. Aos poucos comecei a notar que a quantidade de horas que o Thalles passava na cozinha variava de acordo com o seu emocional, algumas poucas vezes eu me aventurei a compartilhar o espaço da sua terapia e tentar ouvir um pouco das suas angustias e compartilhar as minhas, mas na maioria das vezes eu me limitava a apreciar e saborear o resultado daquelas sessões.

Após os primeiros meses da pandemia eles decidiram que estava na hora de novos desafios. André e eu estávamos sozinhos novamente e em um mundo pós lockdown, onde sair de casa parecia uma ideia insalubre. Com mais tempo em casa, cozinhar ficou muito mais fácil. Eu ainda errava nas proporções um pouco, mas com o André prestes a entrar na adolescência o seu apetite também tinha crescido. Eu nunca fui de inventar muito na cozinha e eu segui e sigo até hoje as receitas da minha mãe. Meu filho também ama a comida da vó e cada vez que eu conseguia chegar perto do tempero da minha mãe era motivo de comemoração.
Quando cozinhar se tornou rotina e eu não precisava passar muito tempo pensando no cardápio ou como preparar determinado prato eu tive tempo e curiosidade em me aventurar. Meu cunhado nos apresentou diferentes receitas salgadas enquanto estava aqui e talvez seja uma das razões pelas quais eu quis tanto tentar algo novo. E assim começaram as minhas sessões de terapia.

Eu não me lembro qual foi a primeira receita que eu tentei fazer seguindo algum vídeo do Youtube, mas eu sei que deu certo, porque me encorajou a continuar procurando por novas receitas. Todas as vezes que eu tinha um tempo sobrando ou estava cansada de comer a mesma coisa do mesmo jeito eu sentava na frente do computador e digitava os ingredientes que eu queria usar, acrescentava a palavra receita e clicava em pesquisar no site de buscas. Não demorava muito para achar algo interessante.

Como estava preparando a receita pela primeira vez, eu tinha pouco tempo para pensar nos meus problemas, meu foco era o próximo passo, próximo ingrediente, a consistência, etc. Eu descobri que nas minhas sessões de terapia eu não estava lidando com as minhas aflições, eu estava me desligando delas, eu me permitia esquecer de tudo o que me incomodava e das obrigações que eu tinha para preparar algo que eu nunca tinha feito, experimentar algo novo, ou desafiar-me para reproduzir algo que eu já tinha comido, mas jamais preparado.

O resultado culinário nem sempre foi o esperado, mas permitir respirar sem as preocupações de sempre recuperava também a minha energia para enfrentá-las; algumas vezes, me dava uma diferente perspectiva sobre o problema e eu tinha mais disposições para encontrar soluções.
Talvez a minha terapia não funcione para todo mundo, quem sabe até mesmo para o meu irmão não era assim que ele encarava a cozinha, mas eu acredito que essa é a beleza da cozinha terapia. Você é quem escolhe a melhor maneira de se tratar, não há julgamento, não existe médico – paciente confidencialidade e você aprende a lidar melhor com você mesmo(a). Uma das maiores contra – indicações da cozinha terapia é o ganho de peso e o desejo constante de preparar receitas novas, mas se isso não te assusta. Boa sorte e bom apetite.
Bônus: André na cozinha 🙂
