Autossabotagem
O ato de questionar a si mesmo em relação a capacidade de realizar um determinado trabalho. A autossabotagem é inerente a idade, gênero ou habilidade, todos estãos sujeitos a o auto questionamento. Há uma diferença entre analisar e reconhecer deficiências que podem ser aprimoradas e duvidar da capacidade em desenvolver algo que sempre foi capaz.
Oi, meu nome é Tássia, e e eu saboto a minha escrita diariamente. Eu passei anos ensinando meu alunos a escrever e a importância de acreditar na sua capacidade de imaginação e criação, no entanto me encontro em um momento extremo de inércia.
Eu, diariamente, abro o meu Google Drive, olho a imensa lista de documentos sem títulos e com uma ideia inicial e algumas ideias jogas, mas não as desenvolvo. Às vezes, nem é a distração ao redor, eu acordo cedo propositalmente para que a casa e a cidade esteja em silêncio, tomo o meu café ouvindo os pássaros e observo com inveja meus gatos dormirem, que não importa onde eu desejo começar o meu dia, eles me acompanham e arrumam um espaço para dormir por lá.
Hoje, mais uma vez, eu encontrei um desses documentos sem título. Segue…
– Como a acusada Tássia K****** R******** se declada diante da denúncia de destruição dos planos de carreira de escritor(a) de centenas de alunos?
– Culpada, meretíssimo.
- Faculdade
- Desestímulo à escrita diante de tantas análises de obras
- Paulo Coelho
- Sistema particular de ensino no Brasil
- ENEM
- Projeto blog Fail
– A ré está pronta para o seu veredito?
– Sim, meretíssimo.
– Tássia K****** R******** é declarada culpada. A sentença a ser cumprida é um pedido formal e público de desculpas à todos os seus alunos
- Desculpa formal
…
Eu lembro que uma das técnicas que eu costumava ensinar para os meus alunos era de escrever todas as ideias, desenvolver o texto e deixar o mesmo na gaveta por alguns dias e revisar só mais tarde, quando você já esqueceu o que escreveu e pode analisar sem tentar defender a qualidade do texto, mas com o intuito de aprimorá-lo.
No caso do exemplo acima, eu deixei na “gaveta” por mais de um ano e como resultado eu não apenas vi a ideia com imparcialidade como já havia esquecido quase que por completo o que eu pretendia. Contudo, hoje eu não vou me deixar abater pela autossabotagem e vou me desafiar a preencher as lacunas de uma premissa que parece perdida. Boa sorte para mim.
Tribunal de inutilidades da mente de Tássia.
– Como a acusada Tássia K****** R******** se declada diante da denúncia de destruição dos planos da carreira de escritor(a) de centenas de alunos?
– Culpada, meretíssimo.
– Existe algo que você queira dizer em sua defesa, para atenuar a sua pena?
– Meretíssima, eu sempre fui apaixonada pela escrita. Eu escrevia letras de músicas quando adolescentes e sonhava em ouví-las no rádio. Quando eu tive que escolher a minha carreira eu não sabia se tinha capacidade para passar no vestibular de cursos concorridos e portanto limitei-me a procurar por um curso que me garantisse alguma chance de acomodar parte dos meus sonhos.
Letras, na minha concepção, era uma alternativa para aprimorar a minha escrita e, provavelmente a educação formal para que eu conseguisse escrever com qualidade.
Eu não sei quantificar o quanto eu estava enganada. Logo depois das primeiras análises de poemas e livros, meu caderno de poemas deixou de me acompanhar.
Eu não concordava com a maioria das análises, nada me fazia acreditar que os poetas tinham realmente escrito com tanto simbolismo e com tão pouca emoção. Os professores me passaram a ideia de que para se escrever um bom poema era preciso decorar o dicionário de símbolos. Porque uma cor não é só uma cor e a lua, não significa apenas que a noite está espetacular.
Uma das minhas aulas favoritas até hoje foi quando disseram que Clarice Lispector havia ido a uma análise de livro sobre uma obra de autoria dela e ao fim da análise ela disse ao professor que havia adorado o que ouvira, mas não refletia a realidade. Se o fato é verídico eu não sei, mas me motivou a parar de dar tanta atenção as análises por um tempo, mas não ao ponto de voltar a escrever.
Eu me lembro do quanto as pessoas admiravam Machado de Assis e muitos outros detestavam Paulo Coelho. Quando questionado o motivo pela aversão ao segundo, diziam que era porque suas obras eram muito similares. Aparentemente, poucas pessoas leram todas as obras de Machado de Assis. Ou ainda como as pessoas amam João Guimarães Rosa com seus neologismos, livro sem capítulos e parágrafos longos, mas recusam a aceitar um jovem que usa a linguagem popular em um texto. Eu não consigo compreender o que críticos literários realmente esperam de um escritor que ainda é o preferido de uma minoria que dita quem são os melhores escritores do país.
Após a faculdade, eu comecei a dar aulas de redação para o ensino médio e curso pré-vestibular. Eu não entendia porque havia uma procura tão grande por professores de redação quando é a melhor matéria para lecionar. Você pode falar de quadrinhos, animes e filmes uma aula inteira e contar como matéria dada dentro do tipo narrativo.
Foi até eu receber os primeiros pacotes de redação para corrigir que eu entendi porque poucos eram os professores corajosos a trabalhar com tal disciplina. Eu confesso que não sinto falta das noites que passei em claro corrigindo redação, mas eu tenho saudade de me surpreender com os textos que os alunos eram capazes de escrever.
O grande problema é que o ensino no Brasil é voltado para o ENEM. Com os alunos até o 9 ano, eu tinha direito de explorar a criatividade deles, pedir para eles escrever textos engraçados, criar propagandas de produtos fictícios, criar jogos e muito mais. Quando eles começavam o ensino médio, a maioria das escolas volta à atenção ao vestibular e até o professor fica entediado das próprias aulas.
Eu não vou mentir, eu tive uma certa liberdade, ou pelo menos, eu me dei a liberdade de, em alguns momentos, fugir um pouco do mesmo em algumas escolas e o resultado me enche de orgulho até hoje. Eu cito dois exemplos dos muitos que eu consigo lembrar agora.
No início da carreira eu fui encarregada de trabalhar Cordel. Eu confesso que eu sabia muito pouco sobre Cordel. Apresentei o projeto da maneira mais sincera possível aos meus alunos. “Eu não escolhi o tema, mas eu acho que a gente pode fazer do nosso jeito e se divertir um pouco ao invés de sofrer”. Eu queria ter guardado para mim o texto que os alunos fizeram sobre uma partida de futebol. Eu me lembro de ver toda a turma se divertir com os textos uns dos outros. A sala que eles preparam no dia da apresentação ficou espetacular e nessa parte eu não tenho mérito nenhum, eles fizeram tudo sozinhos.
Muitos anos depois, já em outra escola, em outra cidade, com muitos anos de experiência. Eu pedi para o primeiro ano do ensino médio produzir um vídeo. O tema era a escolha deles, mas era preciso atender certos requisitos. Era importante planejar, delegar funções e produzir.
Um grupo decidiu ir ao shopping da cidade e entrevistar as pessoas que estavam ali. Depois eles se reuniram e assistiram o vídeo para comentar o que eles acharam das respostas. Isso foi muito antes de “react” ser uma trend na internet. Eu fiquei impressionada com a edição, a coragem e a desenvoltura deles. Sem contar os erros de gravação no final.
O ENEM limita a capacidade criativa dos alunos. Eu entendo a importância da redação e de demonstrar a capacidade de desenvolver um texto argumento, expor uma opinião. Ser capaz de escrever um texto coerente com começo, meio e fim. Contudo, porque ter uma nota boa no ENEM é essencial para garantir uma vaga em uma boa universidade, as escolas e os pais querem que os alunos sejam uma máquina de escrever textos argumentativos e a escrita vai muito além disso.
Não é a primeira vez que eu crio um blog, eu já tive outros. Alguns eu não me lembro a senha e talvez tenha esquecido de apagar, eu tive um blog com alguns alunos um pouco antes de deixar de ser professora deles. Talvez não tenha sido a ideia mais brilhante que eu tenha tido, mas eu queria muito que eles continuassem escrevendo.
Quanto ao meu blog atual, ele está um pouco abandonado eu confesso, mas eu já paguei a renovação do endereço por mais um ano e eu me comprometo a dar mais atenção a ele num futuro bem próximo, afinal a melhor forma de ensinar é através de exemplos e eu quero mostrar que não existe momento certo para se tornar um escritor.
Em resumo, minha trajetória com a escrita foi de altos e baixos e eu não posso negar de que isso talvez tenha afetado a minha didática em sala de aula. Eu sei que não foram poucas as vezes em que eu falei para os meus alunos não seguirem a carreira de professor, pois era uma profissão árdua e com pouco reconhecimento. Eu sei que eu escrevi criticas duras em alguns comentários, principalmente para alunos que eu acreditava ter talento. Eu só queria que eles mantivessem a qualidade dos textos deles. Eu sei que talvez eu tenha negligenciado alguém que realmente tivesse o interesse de escrever, mas precisava de mais tempo e atenção, mas houve um período em que eu tinha mais de 200 redações para corrigir por semana. Eu sei que eu realmente tenha destruído o sonho de ser escritor de algum aluno, mas jamais foi intencional, pelo contrário eu sempre almejei que eles jamais parassem de escrever.
– A acusada tem mais alguma coisa para acrescentar?
– Não.
– A ré está pronta para o seu veredito?
– Sim, meretíssima.
– Tássia K****** R******** é declarada culpada. A sentença a ser cumprida é um pedido formal e público de desculpa à todos os seus alunos
Caro aluno(a),
Eu não sei em que momento da vida nossa relação professor-aluno se estabeleceu, mas eu gostaria de lhe pedir perdão. Perdão pelas vezes em que eu não ouvi a sua pergunta, ou não lhe respondi de uma forma que esclarecesse realmente sua dúvida e, dessa forma, você não conseguiu produzir o texto com qualidade.
Perdão pelas vezes em que eu atrasei para devolver a sua redação corrigida e você teve que escrever sem ler os comentários sobre o seu último texto e, portanto, não pôde evitar os erros do texto anterior. Algumas semanas eram intensas e com muitos textos para corrigir, mas isso não justifica a interferência no seu aprendizado.
Perdão por não ter tempo de explicar com calma onde você poderia melhorar. Meu sonho era poder fazer sessões de mentoria, ter um ambiente onde qualquer aluno que tivesse dúvida ou quisesse melhorar seu texto pudesse ser acompanhado individualmente, sem o barulho da turma ao redor, sem a responsabilidade de ter que manter alunos ocupados ao mesmo tempo que responde a uma questão individual.
Perdão por ter sido injusta na sua nota. Muito provalmente o seu texto veio depois de algum outro muito marcante e por mais imparcial que eu tentasse ser, chega um momento em que o cansaço não permite mais tomar decisões tão assertivas. Como a de parar e continuar a corrigir no dia seguinte.
Perdão por não ser uma professora que fosse tão clara e que você ainda ficasse com dúvidas ao final da aula. Se tem algo que eu aprendi ao longo desses anos é que eu jamais vou conseguir ensinar a todos em uma aula apenas. Cada um tem uma forma diferente de aprender e é extremamente delicado, como professora, atender a todos em 40 minutos.
E por fim, perdão se por minha causa você achou que não era bom o suficiente para escrever. Eu jamais tive a intenção de ter o sonho de um escritor interrompido como o meu foi por tantos anos. Eu detesto imaginar que alguém passou a deixar o seu caderno de poemas em casa por minha causa.
Atenciosamente,
Tássia.
…
O último passo da autossabotagem para quem escreve é quando a tão temida pergunda começa a ecoar na sua mente: “Será que está bom o suficiente para publicar?”.
Portanto, se vocês encontrarem muitos erros em alguns dos meus textos é porque eu estava tentando evitar de desistir de publicar o texto e o fiz ainda com algumas edições para serem feitas.
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