Subiu os últimos degraus que davam acesso ao terraço de um arranha-céu qualquer. Não havia qualquer razão emocional que o fizesse estar ali, apenas a lógica de ser um dos prédios mais altos da região. O seu objetivo era claro, e Carlos se permitiu rir pela ironia de terminar sua vida da forma mais enfadonha e previsível de todas, assim como havia sido a sua vida. Libertar-se do tédio e do vazio que sentia constantemente era, no seu entendimento, a melhor forma de contribuir para a humanidade. Ninguém jamais iria saber da sua única ação consciente para uma sociedade mais equilibrada e isso fazia com que seu último ato fosse ainda mais prazeroso.
Era possível ver a porta que dava acesso ao terraço, estava no final do último lance de escadas, apenas mais alguns metros para concluir o único projeto em sua vida que o havia o deixado motivado e cheio de expectativas. Não que ele esperasse encontrar anjos ou demônios após a sua morte, mas por finalmente conseguir sentir “a adrenalina em suas veias” que tanto ouvira falar. Abriu a porta e para sua surpresa e decepção não estava sozinho.
Um homem, que aparentava 40 anos, jeans, camiseta lisa verde e tênis de marca, estava absorto em seus pensamentos e admirando a vista. Confuso, como se estivesse sido flagrado cometendo um crime levantou as mãos levemente em direção a Carlos.
Era aparente que os dois não haviam considerado a possibilidade de ter que compartilhar aquele espaço. Ambos levaram alguns segundos para esboçar qualquer reação.
– Você fuma? – perguntou Tony, rapidamente, mudando a posição das mãos, à procura do maço de cigarro e do isqueiro. Torcendo para que o outro não houvesse notado que havia interrompido o plano mais importante de sua vida.
– Não. – respondeu Carlos automaticamente. Arrependeu-se, era preciso encontrar uma justificativa para estar ali. – Estou esperando uma ligação. – Sentiu complicar-se ainda mais em sua resposta.
Carlos buscou o celular no bolso da calça e mostrou como se fosse um álibi para estar ali, ele não estava esperando ligação alguma. Tony havia acendido o seu cigarro e não tinha a menor pressa em terminá-lo, estava disposto a pelo menos um vez em sua vida empenhar-se por algo, ele queria o direito de morrer sozinho, em paz e sem plateia.
Tony havia chegado meia hora antes de Carlos, ele sabia o que queria, havia sonhado tantas vezes com o seu mergulho rumo ao fim e imaginava que a morte lhe cabia naturalmente, mas ao se aproximar do parapeito mal conseguiu olhar para baixo, a sua vista tornou-se confusa, seguida de tontura e náusea. Foi preciso dar alguns passos para trás. Não estava arrependido, queria seguir com o plano, no entanto tinha que ser em completa sanidade e não alimentado pelo medo e desconforto, afinal morria para se livrar da dor.
Carlos dirigiu ao parapeito. Observou a cidade por alguns instantes, não era possível ouvir o barulho de carros ou qualquer confusão que o centro de uma cidade tem, também não conseguia ver pássaros voando ou repousando em nenhuma das poucas árvores que havia naquela paisagem. Ficou fascinado ao notar que os seus olhos viam a representação da sua vida, muitas construções, todas vazias, silêncio e neutralidade, era como ver uma fotografia exceto pelo vento que sentia contra o seu rosto.
Ele nunca entendeu porque as pessoas tinham a necessidade de apreciar uma determinada imagem, no entanto, naquele momento, olhar para os prédios, as ruas e os carros em uma cidade construída sem qualquer planejamento era como olhar para si mesmo. Na realidade, admirar-se por tal paisagem era apenas mais uma prova de que estava deslocado no mundo. Eventos sociais, sozinho, em qualquer atividade banal ou até mesmo apreciando uma paisagem inóspita para muitos, nada parecia fazer sentido e ele já havia concluído que nunca faria. Olhou fixamente para baixo e teve a certeza de que estava cada vez mais próximo do seu destino.
Tony não podia ignorar o outro e a sua naturalidade ao se aproximar do resguardo. Será que estava enganado? Será que talvez tivesse tomado a decisão errada? Mesmo depois de tanta pesquisa e tanta reflexão?
– Cuidado! Não vai querer chegar lá embaixo primeiro que eu. – disse Tony. Era evidente que mesmo que não quisessem compartilhar do mesmo espaço, partilhavam do mesmo plano.
Carlos voltou-se para Tony e olhou fixamente em seus olhos, como que tentando encontrar a verdade por trás de seu comentário. Sentiu uma sensação estranha tomar seu corpo, algo que nunca havia sentido antes, um formigamento crescente e não conseguia entender o que significava.
Tony começou a rir, mas ainda mantendo seus olhos fixos nos de Carlos. Afinal, a pessoa à sua frente parecia tão desconcertada quanto ele. Será possível reconhecer pessoas com projetos similares só pelo olhar? Encontrou coragem para sentar-se junto ao peitoril e escorar suas costas onde ele planejava ser o último lugar em que seus pés teriam que dar suporte ao seu corpo. Deu uma longa tragada em seu cigarro, fechou os olhos por alguns instantes, olhou para Carlos e disse:
– Primeira vez?
Não era preciso introduzir o assunto, era óbvio que os dois estavam lá com o mesmo propósito.
Carlos sentiu todos os músculos do seu corpo se contraírem e por alguns segundos pensou em mentir, abandonar o terraço e ir em busca de outro arranha-céu, mas não podia negar a curiosidade em poder compartilhar o que sentia sem se sentir julgado ou ter a necessidade de explicar demais, afinal não é todo dia que se encontra alguém que considera a morte mais atraente do que a vida.
– Espero que seja a única também. – respondeu Carlos, os lábios tentaram esboçar um sorriso, mas ele ainda se sentia tenso.
Uma outra pontada de desapontamento atingiu Tony. Aquela já era a sua terceira tentativa, a primeira de um prédio, antes teve o enforcamento, que quando acreditava que estava em seus últimos momentos de agonia o teto cedeu e lhe sobrou uma marca no pescoço e algumas pequenas escoriações e a tentativa com os remédios, interrompida por sua esposa.
Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, parecia que um estava à espera do outro, ambos ansiosos pela conversa, mas não sabiam por onde começar.
– Você acha que somos egoístas? – perguntou Tony.
– Ser egoísta é pensar em si mesmo, é sentir prazer em ter algo para si. Eu não sinto nada, quando criança eu fui o melhor aluno da escola para sentir o carinho dos meus pais, fui o pior também para provar do ódio deles e tudo que eu consegui sentir foi indiferença. Meus pais eram excelentes, me apoiaram, me repreenderam, me levaram na terapia, mas ainda continuei vazio… Já ouviu falar que depois da morte não existe nada? Imagine que o nada pudesse ser um planeta, eu passei a minha vida toda morando no planeta errado e tudo o que eu quero é voltar para casa.
Tony estava perplexo, ninguém nunca havia sido tão sincero e ao mesmo tempo tão confuso.
– Planeta nada! Parece um bom destino.
Carlos não sabia se ele estava sendo irônico ou se realmente tinha entendido o seu pensamento.
– Eu nunca tive ambições, metas, projetos, até entender que a morte não era só o meu destino, mas também o meu estado em vida.
– A dor sempre foi uma constante na minha vida. Eu já tentei de tudo para tentar me sentir melhor, casei, trabalhei, fui feliz, ou talvez acreditei que vivia em um momento de felicidade, mas a dor estava sempre lá, tomando cada segundo de paz que eu pudesse ter. Talvez o vazio me traga alguma paz.
– Para sentir dor é preciso conhecer a felicidade, para sentir ódio é preciso ter um dia experimentado o amor. Eu nunca senti nenhum deles, mas se você é capaz de sofrer eu tenho certeza que será capaz de ser feliz. Para mim é um pouco diferente, é como se tivessem esquecido de conectar os cabos responsáveis pelas emoções.
Não havia dúvidas de que o garoto sentado ao seu lado tinha mais maturidade do que aparentava, e ele lhe despertava algo que há muito já havia considerado perdido, a esperança.
– Talvez eu seja egoísta – disse Tony – minha esposa chegou em casa mais cedo no dia que eu tomei mais comprimidos do que o recomendado e ligou para a emergência. E desde então a minha vida é um tormento, ninguém sabe o quê ou como falar comigo, todos têm movimentos premeditados à minha frente, minha casa não tem facas nem para cortar bife durante o jantar, parece que eu fui resgatado para viver num purgatório em vida.
Carlos não havia considerado a possibilidade das consequências se tudo desse errado, porque não ia dar errado. Também não sabia o que responder a Tony, assim como ele não queria ser julgado ou contradito pela sua decisão ele não iria fazer o mesmo. As palavras começaram a sair da sua boca sem ele mesmo se dar conta.
– Eu não escrevi nenhuma carta com as minhas últimas palavras para explicar a minha decisão, assim como não tenho dívidas, amigos, esposa, filhos, patrão ou ninguém que vá sentir a minha falta, nem mesmo um animal de estimação. Uma vida sem marcas, sem sentimentos e sem necessidade, nada mais justo do que encerrá-la para dar espaço a alguém que ame vivê-la.
– Mas eu não amo a minha vida.
Carlos notara que havia falado demais e sem intenção.
– Eu não me referi a você, mas a qualquer pessoa, talvez essa pareça a saída mais fácil para muitos, talvez haja períodos na vida em que não se enxergue além dessa intensa dor que tantos falam. Eu já revisitei minha decisão muitas vezes, o que as pessoas veem como fim para mim é a única forma de começo, de oportunidade para que algo deixe de ser indiferente.
O formigamento em seu corpo voltou, como se pela primeira vez fosse capaz de sentir algo, empatia. Ele sabia de seu destino e estava determinado, entretanto tinha a impressão de que a pessoa ao seu lado precisava de mais tempo, não que ela também não tivesse o direito de decidir o seu próprio destino, mas era importante uma certeza absoluta em casos como esse.
– Olha, está começando a anoitecer e por mais poético que soe, sumir na escuridão não faz parte do meu plano. Eu vou descer, pelas escadas, as mesmas que eu usei para chegar até aqui.
Carlos estava incomodado, ele tinha sido honesto até aquele momento, mas aquela sensação estranha não lhe deixaria concluir seu plano com sucesso, ele sabia disso. Ele não queria ser lembrado por ninguém e jamais imaginou que alguém com convicções suicidas pudesse convencer um desconhecido a desistir de se matar, mas ele sabia que era o que deveria fazer.
Desceram o prédio pelo acesso normal. Não trocaram informações, nem palavras de agradecimento, não havia nada a agradecer e nunca mais se encontraram.
Tony nunca mais teve coragem de subir ao topo de um prédio ou qualquer outro ato que atentasse a sua própria vida, ele nunca soube explicar o que fizera mudar de opinião, mas sabia que havia ganhado uma oportunidade única, ele não amava a sua vida quando deixou aquele terraço, mas ele tinha a esperança de que num futuro isso iria mudar.
Fim.
Consideração: Se você chegou até aqui, primeiramente obrigada. Segundo, eu estou bem, eu sei que esse é o segundo conto que envolve suicídio, mas eu considero o tema relevante ou talvez seja simplesmente vingança por ter que implorar para meus alunos para não matarem os personagens que eles criavam em todas as histórias. 🙂