De volta para algum lugar

Dia 02 de novembro de 2022 foi o dia que eu desembarquei no Brasil. Tem dias que parece que acabei de chegar e ainda estou tentando me readaptar, outros parece que cheguei há tanto tempo que eu começo a questionar se já está na hora de procurar outro país para morar

A China

Um dos motivos que me fizeram voltar para o Brasil está relacionado às políticas de saúde adotadas na China nos últimos três anos. A instabilidade do país que se tornou refém de um vírus e que a qualquer momento cidades inteiras eram cerceadas e as pessoas impedidas de saírem das suas casas.

Em janeiro de 2023, a China acabou com a maioria dessas políticas. Não há mais quarentena para entrar no país, todos os vistos, incluindo o de turismo, voltaram a ser expedidos a partir de março de 20023, não há mais lockdowns ou código de saúde, as pessoas não são mais isoladas e encaminhadas para centro de recuperação. Resultado, o país inteiro adoeceu, o comércio e serviços de entregas foram interrompidos por falta de funcionários “saudáveis”, mas ninguém reclamou. Todos estavam ansiosos para ter a rotina deles de volta e era um desconforto necessário. 

Muitos estrangeiros aproveitaram para ir visitar a família, afinal o risco de ficar impedido de voltar ou de ter despesas adicionais da quarentena eram baixos.

Às vezes eu me questiono: “Talvez se eu soubesse que faltava apenas dois meses para esse pesadelo acabar…” “Se eu tivesse um pouco mais de energia e sanidade para esperar…” “Será que as coisas vão voltar a ser como antes?” Mas eu havia chegado ao meu limite e não fazia sentido continuar lá se eu tinha uma opção, melhor ou pior ainda estou descobrindo.

Foi brutal estar na China durante o período do vírus e todas as barreiras e mudanças que ele provocou na minha vida. Eu só consegui perceber quando fui embora. Ficam as memórias, os amigos e a vontade de talvez um dia visitar o lugar que por anos eu chamei de lar.

Ainda sobre a China

Eu tenho amigos que saíram da China há mais tempo. Muitos já refizeram a vida, estão felizes e gostariam de voltar para China para visitar, apesar dos amigos chineses que ainda estão lá, a grande maioria dos expatriados que conheciam também já foram embora.

Outro dia, uma desses amigas me mandou uma mensagem “Por que a gente foi embora?” A nostalgia nos confunde ao lembrar apenas os momentos bons do passado, reforçando apenas o positivo de um determinado período da vida. Não foi difícil lembrá-la do porque fomos embora, afinal eu havia acabado de voltar e ainda não havia tido tempo de sentir saudades da China (ainda não deu).

Essa mesma amiga me recomendou um canal no YouTube, The China Show, toda semana eles apresentam um programa de mais ou menos uma hora e meia sobre as notícias, principalmente políticas, da China. Eu fico feliz que só fui conhecer esse canal depois de ter ido embora, do contrário eu teria vergonha de morar no país tendo acesso a informação que eu tenho agora.

Brasil

É engraçado apreciar as pequenas coisas que eu não sabia que sentia falta e respirar fundo para tantas outras que me incomodam e eu tinha esquecido.

Eu havia lido dos problemas de readaptação das pessoas que voltam a morar no país de origem, mas eu acho que eu tenho uma certa vantagem sobre a maioria das pessoas. Meus pais mudaram muito durante toda a minha adolescência. Eu voltei para o país e lá estavam eles morando em outro estado novamente. 

Uma das principais dificuldades de quem volta é a interação com os amigos, a cidade que está diferente. No meu caso, meus amigos estão em estados diferentes, a cidade que eu moro eu nunca morei antes e não é a primeira vez que eu preciso passar por esse processo de adaptação dentro do Brasil.

É bom andar nas ruas e se sentir parte do ambiente e não um corpo estranho que muitos apontam e comentam sobre você. É bom poder resolver as coisas sem precisar do auxílio de alguém ou de um tradutor. É bom conseguir explicar claramente o que se quer, pedir por explicações e compreendê-las. É bom não ter uma barreira idiomática. É bom poder entrar em uma padaria e poder comprar tudo o que eu sonhei poder encontrar nos últimos cinco anos.

Mas Funk ainda tinha que ser popular? As pessoas precisam ouvir no último volume e me obrigarem a ouvir junto com elas? Tínhamos que estar tão atrasados com a questão de transporte? Coleta seletiva? Reciclagem? Eu não vou entrar no mérito político, mas de tudo que a gente se deixa ser influenciado pelos Estados Unidos, nós tínhamos também que seguir a polaridade política que eles estão vivendo por lá? Para quem ainda não percebeu, somos todos os únicos prejudicados com esse extremismo. Tem que ser bem sucedido só se for passando por cima do coleguinha? Não dá para todo mundo crescer junto?

Conceito de “casa”

Mesmo antes de ir morar na China eu já tinha definido que eu queria estar onde me sentisse bem, que o lugar tem sim uma forte influência, devido a estrutura que uma cidade pode oferecer ou não, mas é preciso também se esforçar para transformar um determinado lugar no seu lar. A China por muitos anos foi mais do que minha casa, foi o lugar onde construí uma família (irmão e irmãs do coração), e onde finalmente fui respeitada e valorizada como professora. No entanto, minha família foi embora, o país deixou de ser receptivo e havia chegado a hora de partir.

Vamos falar sério?

Eu não frequento psicólogo ou terapia, mas tenho lido bastante e conversado com pessoas sobre saúde mental e eu devo reconhecer que eu apresentava muitos sintomas de burnout pouco antes de vir embora. Talvez eu não tenha chegado a um ponto extremo, mas se cada sintoma valesse um ponto eu ia ter pontos suficientes para dividir com outras pessoas.

Eu sinto que as mudanças foram tão gradativas que não percebi o quanto tudo isso estava me afetando e de repente eu já estava chorando sem motivo aparente algumas vezes na semana. Não é fácil aceitar que se tem um problema, principalmente quando todos dizem que você tem sorte na vida e que não há razões para se sentir triste, mas a dor é real.

Levantar da cama é difícil, entrar em sala de aula é um pesadelo, pensar que no dia seguinte tudo vai se repetir por uma eternidade infinita e sem encontrar razões do porquê continuar fazendo é como se a cada dia de trabalho você tirasse terra de um buraco que nunca quis cavar e agora não consegue mais parar.

A gota d’água foi a viagem de volta e toda a epopeia que eu já compartilhei aqui. Outro dia, alguns dos meus primos e tios estavam nos visitando e eu acabei contando a história com um pouco mais de detalhes do que deveria, meu filho reclamou “Você demorou demais para contar, eu comecei a sentir tudo de novo. Por que você fez isso?” E minha única resposta foi: “Eu não sei, mas também me arrependo. Porque também estou sentindo”. 

Interessante o que os traumas fazem com a nossa mente, toda vez que a gente acha que superou ou que nem foi tão sério assim, eles voltam a atormentar, às vezes de uma forma pior do que a anterior e é difícil explicar para alguém que uma parte do passado continua a incomodar, mesmo quando não há razões lógicas para tal. 

Eu ainda tenho dias que eu preciso de silêncio, tem dias melhores que outros. Nos dias ruins eu me vejo tirando areia do buraco de novo, mas quem sabe um dia a terapia vai conseguir colocar de volta parte da terra no buraco que eu cavei.

Novos caminhos

Começar tudo de novo, sem saber para onde ir ou o que fazer. Como eu disse, minha saúde mental foi um motivo importante para sair da China. Eu me lembro de ter ouvido algumas vezes alguém comentando que há empregos que sugam completamente a sua energia, eles aproveitam toda a sua motivação, criatividade e tudo o mais que você tem para oferecer até que você não tem mais nada e tudo fica vazio.

Eu não acho correto culpar apenas um lado, eu também permiti que chegasse a esse ponto, mesmo que inconscientemente, talvez por estar tão próximo da situação não consegui enxergar ou não vi outra opção, mas eu sei que eu tenho participação em permitir que não sobrasse nada dentro de mim. 

A profissão de professor é nobre, mas requer demais dos profissionais. Você não pode estar apenas bem para você, tem 200 alunos que não tem nada a ver com o seu problema e há um limite até onde você consegue manter as aparências e desempenhar o seu trabalho.

Quando eu cheguei, o simples pensamento de entrar em uma escola fazia o meu corpo enrijecer, eu acredito que eu não passaria em nenhuma entrevista de emprego para professor, por auto-sabotagem, porque meu corpo não suportaria a responsabilidade. Eu recebi o convite para voltar à escola que eu estava lecionando antes de ir embora, o que é gratificante, mas por respeito eu jamais poderia considerar.

Cinco meses se passaram, eu tenho trabalhado no ambiente digital. Aprendiz de marketing digital, assistente virtual e o que mais aparecer. Não vou mentir, eu gosto bastante, mas não é tão simples. Tentar mudar de carreira aos 36 anos é apenas uma das consequências de onde minha mente chegou. Cinco meses se passaram e voltar à sala de aula já não me parece mais uma ideia tão estranha ou absurda. 

A escola que eu trabalho na China fez um video de marketing lindo, com as proposta de ensino do diretor e o que educação realmente significa (um dia eu escrevo sobre a educação na China, porque precisamos esclarecer alguns equívocos, principalmente que os brasileiros têm a respeito da educação chinesa), eu confesso que questionei minha decisão em largar a minha carreira na educação. No mesmo dia à tarde, meu filho chegou da escola (ele está estudando em uma escola pública de período integral) e ao relatar seu dia eu lembrei que existe uma diferença muito grande entre teoria e prática, principalmente na educação.

Cinco meses se passaram, eu tenho poucos amigos, o que nunca me incomodou desde que eles fossem pessoas que eu pudesse contar, mas eles estão fisicamente longe e a saudade de vê-los é uma constante. Eu não tenho um trabalho estável, apesar de estar conseguindo manter uma rotina saudável. Ainda me recuso a ver jornais, porque são depressivos demais e tenho tentando encontrar formas de me adaptar ao Brasil (um período sem me estressar com visto é libertador).

André é um adolescente

Levar o André para a China é um orgulho para mim, eu pude oferecer para ele muito mais do que no Brasil. Nós viajamos, conhecemos lugares, fizemos atividades que, provavelmente, jamais teríamos a chance no Brasil e ele cresceu em um ambiente onde podia andar livremente pela cidade sem ter que olhar constantemente ao seu redor procurando por indícios de perigo. 

Eu, por outro lado, estava tranquila quando ele estava sozinho em casa, ou precisava pegar um ônibus, metro ou taxi para ir à qualquer lugar. Ele não precisava de dinheiro, porque podia pagar tudo com o celular e mesmo que precisasse não seria um problema. 

Crianças e adolescentes na China são mais inocentes em alguns aspectos que os brasileiros, portanto eles crescem em um ambiente preocupado em brincar e estudar, apesar da palestra antidroga ir todos os anos na escola, a acessibilidade é muito diferente. 

No entanto, onde eu morava poucas crianças falavam inglês e muitas tinham os finais de semana repletos de atividades extra-curriculares ou aulas de reforço, o que não permitia que eles se encontrassem com frequência. Os americanos que eram amigos do André estavam nos Estados Unidos de férias quando o vírus foi anunciado e não voltaram. 

Por muito tempo o André convivia apenas com os meus amigos, os colegas da escola ele interagia apenas no horário da educação física. Isso lhe deu a oportunidade de conhecer muito sobre outras culturas e pessoas de diferentes lugares do mundo, mas a cara entediada dele quando a gente se encontrava em um café e sentava por horas era impagável.

Quando tivemos o lockdown em setembro de 2022 eu vi a luz que existia no meu filho se apagar. Nós já estávamos considerando a possibilidade de deixar a China, principalmente porque o André ia começar o Ensino Médio e eu queria que ele frequentasse a escola regularmente e tivesse amigos como qualquer adolescente, mas ainda tinha um semestre inteiro pela frente e muita coisa para acontecer. 

Nas férias de julho, ele participou de um treinamento intensivo de basquete, de segunda à sexta ele passava as manhãs jogando com meninos da idade dele. A primeira semana de aula foi muito melhor do que ele havia imaginado e ele se permitiu criar expectativas de que naquele semestre ele poderia ser um adolescente comum. 

Então, uma semana depois do início das aulas tudo fechou, ele que estava praticando esportes quase que diariamente ficou limitado ao espaço de um apartamento. 

Depois da primeira semana foi uma ladeira de emoções para ele e não tem nada pior para uma mãe do que se sentir impotente ao ver seu filho sofrer (naquele momento, nem sair do país nós conseguiríamos sem antes passar por uma quarentena em outra cidade).

Cinco meses se passaram, ele vai a escola, às vezes reclama da falta de tarefa de casa, já fez alguns amigos na escola. Ele está em um time de basquete em São Vicente e vai participar de dois campeonatos esse semestre. Quando ele não está treinando com o time, ele pega a bicicleta e vai jogar em uma das quadras públicas da cidade. Está em um grupo do WhatsApp de meninos que jogam. Mês passado eles foram comer em um rodízio de pizza e ele voltou dizendo que não aguentava mais dar risada. 

Seu brilho não só voltou como tem ganhado novas formas, ele agora tem a oportunidade de ter amigos da idade dele, uma rotina saudável e criar novas memórias. A última vez que conversamos sobre a China ele comentou que parecia um passado distante, mas ao mesmo tempo muito vivo. As únicas coisas que ele sente falta é conseguir pagar tudo com o celular e a facilidade no transporte para ir para qualquer lugar.

P.S.

Normalmente, eu questiono minhas decisões, eu tenho a tendência a questionar se realmente era a melhor escolha. Eu não tenho certeza se voltar ao Brasil era o que eu devia ter feito, minha vida ainda está uma bagunça e eu sinto falta da rotina que eu havia criado na China. Ainda tenho momentos em que eu quero sumir do mundo e das pessoas, mas ver meu filho crescendo e tendo a oportunidade de fazer o que ele ama, rir e fazer amigos me traz a certeza de que pelo menos não foi uma escolha ruim.

Published by Tassia Kespers

Escritora, professora, tradutora, revisora, mãe e exploradora nas horas vagas.

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